29 de nov. de 2020

Conversar é preciso

 





Por Vânia de Morais

Conversar é uma atividade que está entrelaçada com a evolução do ser humano e exerce papel fundamental no desenvolvimento cognitivo e emocional das pessoas. Trata-se de uma necessidade fundamental. Segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, o ser “humano” surgiu de fato a partir da linguagem, que permitiu à nossa espécie coordenar ações de maneira a partilhar alimentos e toda a convivência que isso implica.

Não há nada mais comum e cotidiano do que conversar. Conversamos sobre trivialidades, tarefas, metas, problemas a resolver, cinema, literatura, moda, programas de TV, sobre nossas vidas e a vida dos outros, dilemas, conquistas e tropeços. Conversamos sobre planos, dificuldades, planejamentos e trocamos palavras nos breves momentos nos quais ocupamos o mesmo espaço no elevador com pessoas desconhecidas.

Conversar não se restringe ao domínio das palavras. Antes mesmo de sermos capazes de  usá-las, conversamos por meio de sons e movimentos que exprimem algum significado e provocam uma resposta da pessoa a quem nos dirigimos: o colo, o leite, o beijo da mãe. O  ser humano se constitui por meio do ato de conversar e é dessa forma que criamos o mundo  no qual vivemos. 


Desafios da comunicação

A vida contemporânea nas grandes cidades oferece cada vez menos oportunidades às pessoas para a conversação despretensiosa ou pessoal. A corrida contra o tempo a fim de se cumprir tarefas não permite os bate-papos de antigamente; o uso das tecnologias como mediadoras das comunicações reduz os contatos pessoais; a competição que permeia a relação entre as pessoas impede, em grande medida, que assumam sua realidade pessoal perante o outro, sendo abrigadas a “parecer” mais do que “ser”. Como consequência, a queixa de solidão e isolamento tornou-se rotina nos consultórios de médicos e psicólogos. As dificuldades interpessoais crescem a cada dia.  

Para uma comunicação bem-sucedida precisamos dispor, entre outras coisas, de habilidades linguísticas, emocionais e sociais que nos permitam dizer o que queremos de maneira a sermos ouvidos e compreendidos. Além disso, é preciso lidar com a lacuna que existe entre o  que eu digo e o que o outro escuta – e vice-versa. Para entender o que uma pessoa fala, usamos como referência nossos próprios conceitos, experiências e valores, que funcionam como filtro. Só podemos entender o que o outro diz a partir do que somos, pensamos e vivenciamos.

Nunca saberemos, por exemplo, o que sente uma pessoa quando nos relata sua dor. No entanto, conhecendo a nossa dor, tentamos entender, por meio dela, como o outro está se sentindo. Ao conversar com alguém que professa uma crença diferente da nossa, podemos discordar e essa discordância faz sentido com base em nossas experiências. Só que o outro tem outras bases. Portanto, suas crenças são tão válidas pra ele quanto as nossas para nós. Por isso é preciso uma boa dose de respeito para lidar com as diferenças.   

Difícil entendimento

Interagir ou conversar pressupõe uma via de mão dupla na qual a informação vai e vem,  sendo que muitas vezes se transforma durante a conversa. Contudo, nem sempre é assim. Podemos observar situações nas quais as pessoas simplesmente falam, mas não conversam.

Ocorre, por exemplo, de não haver entre as pessoas uma disposição para falar e ouvir. Ou, dizendo de outro modo, para dar e receber atenção. Muitas “conversas” são verdadeiros monólogos nos quais uma pessoa – ou mais de uma – apenas fala. O ouvinte não interessa e o que importa é falar numa espécie de transbordamento de algo que parece não caber em si.

Nas discussões mais acaloradas é comum encontrarmos pessoas que defendem seu ponto de vista tomando a si mesmas como única referência e sem se esforçarem na busca do entendimento. Nesse caso, o que interessa é fazer valer uma opinião, como se o outro só existisse como objeto da necessidade de autoafirmação. O desencontro é visível e o final  desse tipo de “conversa” é facilmente previsível. 

Muitas são as dificuldades de entendimento entre indivíduos. Contudo, independentemente disso, precisamos falar e conversar. Quando isso acontece, organizamos nossos pensamentos, entramos em contato com nossos sentimentos, jogamos luz em lugares dentro de nós ainda 
não explorados.

Esforço de coerência

Ao conversar temos a chance de conhecer pontos de vista alternativos e ampliar, modificar ou mesmo reverter nosso modo de ver, sentir e viver a vida. Organizamos e entendemos o mundo e o que se passa dentro de nós por meio da palavra. Por isso falamos sozinhos, fazendo conversar as nossas partes que discordam entre si sobre as coisas da vida e inventando um interlocutor a quem perguntamos, explicamos e até fazemos promessas.

Conversar nos obriga a fazer um esforço de coerência. A coerência é uma cola que dá consistência e conforto à existência humana. Conviver e conversar são atos que contribuem para a construção da identidade, o que nos permite também estar só. Ser na ausência do outro é para aqueles que se empenham na jornada para “si mesmo” em busca de se ver, não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora.

Ao se reconhecer, as pessoas são capazes de conviver (viver com) consigo mesmas e com o silêncio sem se despedaçar, pois já alinhavaram uma inteireza de si. Mas essa jornada não se faz só. Ser e “estar com” são, em grande medida, inseparáveis. Há que haver algum acompanhante a ouvir nossas histórias e a dar um continente ao rio que corre dentro da gente para que encontre seu curso.



22 de nov. de 2020

A cultura da ansiedade


 A cultura da ansiedade





Vivemos, quase sempre, esquecidos de que a vida é finita, correndo em direção a um futuro que nunca chega, a objetos de desejo que deixam nossos olhos prisioneiros de uma oferta que se apaga com o tempo, como o arco-íris que se oferece no horizonte para nunca ser alcançado.

A regra que rege nossa sociedade dita que devemos viver com a meta de garantir, no futuro, o pão, a casa, a escola dos filhos, o status, a aposentadoria. Os anúncios vendem as férias perfeitas, homens e mulheres perfeitos, carreiras perfeitas, vidas perfeitas. Hipnotizados, partimos numa busca frenética por algo que está sempre para lá do que se tem. Uma corrida pela garantia de necessidades que são, em sua maioria, criadas pela cultura e alimentadas pela imaginação.

Essa é uma das razões do adoecimento em massa, do crescimento exponencial dos transtornos de ansiedade nas sociedades ocidentais. Como se tivéssemos algum poder sobre o curso do tempo, a vida – em vez de vivida – precisa ser garantida à custa de muito sacrifício. Não podemos sentir-lhe o sabor, pois nossa atenção está sempre voltada para um passo além de onde estamos. Contudo, o corpo não sabe sentir no futuro. O corpo é presente, assim como a vida.

Previsões negativas
Acreditar nos sonhos e partir em busca deles é fundamental, mas deve-se ter cuidado com a intensidade da luta que se trava para evitar a frustração e a dor. A mente projetada para o futuro quase sempre desaba no abismo onde habitam nossos maiores temores. A tentativa de obter garantias de que as coisas coisas que tememos não ocorrerão, significa, quase sempre, povoar o cotidiano de fantasmas, que são trazidos do futuro para assombrar o presente. O resultado é a experiência da ansiedade, um estado psicofisiológico provocado por previsões negativas que vislumbram perigos e ocorrências indesejadas.

A ansiedade é uma resposta natural do corpo às situações de perigo e seu principal objetivo é proteger o organismo de ameaças, preparando-o para reações de luta ou de fuga. Neste processo, o sistema nervoso simpático libera adrenalina e noradrenalina, substâncias fabricadas pelas glândulas suprarenais. A atividade no sistema nervoso simpático acelera os batimentos cardíacos e aumenta a sua força. O sangue é redirecionado para algumas partes do corpo, a velocidade e a profundidade da respiração são aumentadas. As pupilas se dilatam e também ocorre tensão muscular, redução na produção de saliva e na atividade do sistema digestivo. Acima de tudo, a reação de luta ou de fuga resulta na ativação geral do metabolismo corporal.

A sensação proveniente dessas alterações inclui taquicardia, sudorese, boca seca, náuseas, constipação intestinal ou diarreia, sensações de falta de ar, dores e pressão no peito, tonteira, visão borrada, confusão, sensações de frio e calor. Associados a tais sintomas estão os impulsos de agressão e fuga. Frequentemente, as pessoas que experimentam a ansiedade intensa acreditam que estão doentes ou enlouquecendo. O estresse crônico provoca alterações patológicas, que podem resultar em doenças de pele e imunológicas, asma, gastrite, úlcera e graves comprometimentos cardiovasculares.

Transtornos associados
Os transtornos emocionais relacionados à ansiedade são abundantes na atualidade, incluindo fobias simples e fobias sociais, transtorno do pânico, transtornos obsessivos e quadros de ansiedade generalizada. Fadiga, irritabilidade, fraqueza, ruminação de ideias, rituais compulsivos, disfunções sexuais, alterações de sono e apatia são sintomas comuns. Além disso, o desgaste físico e psíquico pode gerar um quadro depressivo associado.

As reações de estresse necessárias para o enfrentamento dos perigos reais da vida podem ser evocadas para o combate aos perigos imaginários. Quando isso se cronifica, causa um enorme desgaste  físico e psíquico (adoecimento), que mina a capacidade do sujeito de desfrutar a existência, podendo até mesmo abreviá-la.

Diante da doença, costuma emergir a constatação da finitude. Surpresas, as pessoas se lembram da vida que deixaram de viver para garantir aquela que talvez não venham a desfrutar. Os planos de juventude eterna, de beleza impecável, de poder, riqueza e sucesso sucumbem diante do inevitável ponto final. Esta pode ser uma grande oportunidade para uma pausa no automatismo, para a reflexão, para a retomada da experiência de viver plenamente. Experienciar implica em colocar plenamente a atenção na experiência vivida aqui e agora. É estar implicado, com toda a complexidade de que somos constituídos, nos sentidos que a experiência nos proporciona. Enfim, é preciso estar no corpo.

 A luta travada para evitar a dor futura, além de trazer o desconforto para o presente, eleva o prazer a uma condição de algo sempre adiado. Estar ciente da própria finitude pode ser um poderoso agente da vida, acordando-nos para o fato de que a felicidade – seja ela o que for – só é possível no mergulho, na interação, na experiência sensorial, na vivência daquilo que faz sentido no presente. Para desfrutar a vida, é preciso saborear cada dia da travessia, lembrando que, um dia, chegaremos ao ponto final. 

Vânia de Morais Psicóloga, mestre em Ciências da Saúde, doutora em Linguística, pesquisadora em cognição e linguagem. Professora em cursos de capacitação de psicoterapeutas e especialização em Terapias cognitivas. 

15 de nov. de 2020

O medo e a imaginação: a vida pode ser melhor no mundo real.




Vivemos em um mundo cheio de perigos. Estão por todos os lados, no trânsito, na vizinhança, nos relacionamentos. Quando ligamos a TV, imagens e notícias da violência invadem nossa casa e nos deixam temerosos. Nos preocupamos com a nossa segurança, da nossa casa e com a das das pessoas que amamos. 

Além dos perigos concretos, convivemos com ameaças à nossa vida emocional. Há o risco de sermos demitidos, trapaceados, de não ganharmos dinheiro o suficiente, de não sermos os melhores no exercício da profissão ou suficientemente bons para vencer a concorrência, manter o emprego, o status, o casamento, a família.

Na selva de pedra na qual vivemos, estamos todo o tempo nos protegendo de perigos reais e imaginários. Por isso podemos dizer que o medo adoece psiquicamente a sociedade, gerando ansiedade e insegurança.

Recursos terapêuticos

Como podemos ser saudáveis se vivemos numa sociedade enferma? É fundamental para a nossa saúde que busquemos uma resposta para esta pergunta, pois o medo e os transtornos de ansiedade dele provenientes são a maior causa de adoecimento psíquico no nosso tempo. 

A psicologia oferece recursos terapêuticos eficazes para o manejo da ansiedade. A medicina dispõe de fármacos, que são agentes fundamentais para o alívio do sofrimento. Ambas se tornam potentes aliadas na regulação psíquica e bioquímica necessária à reversão do estado de alerta que é patologicamente disparado em muitos de nós.

Mas o desafio que temos pela frente ao lidar com esta questão está relacionado às sutilezas implicadas na relação entre os perigos que são reais e aqueles que são fruto da imaginação. O fato de vivermos num mundo que realmente comporta muitos riscos pode nos levar a tentar prever, ou seja imaginar, as futuras ameaças às quais estaremos expostos, a fim de nos protegermos.

A capacidade de planejamento e ação eficaz relacionada à antecipação do tempo é uma conquista evolutiva do cérebro humano. Ela foi extremamente importante na evolução da espécie, tornando-se uma das características que nos diferenciam dos outros animais.

No entanto, essa mesma capacidade pode se reverter numa patologia. Isso ocorre quando as previsões criam, de maneira crônica, um estado de alerta que nos mantêm em constante vigilância, temendo e criando estratégias e comportamentos que visam evitar perigos imaginários. Quando isso ocorre, os custos físicos e emocionais são altíssimos (como abordados no artigo “A cultura da ansiedade”). 


Riscos imaginados

A solução saudável para o problema é nos protegermos, sim, dos perigos reais, mas sem nos deixar dominar pelo medo daqueles que são mero fruto da nossa imaginação. Para fazer isso, o primeiro desafio é sabermos diferenciar o real do imaginário. Na maioria das vezes, essa tarefa exige a ajuda de um psicoterapeuta.

Os ansiosos tendem a acreditar que seus pensamentos refletem a realidade e essa convicção é o que faz disparar as reações de ansiedade, que são reais, incômodas e frequentemente assustadoras para quem as experimenta. Contudo, tais reações são consequência do pensamento que prevê perigos, são a preparação do organismo para o enfrentamento dos riscos imaginados.

Depois de identificarmos as ameaças reais, é preciso desenvolver as habilidades necessárias para enfrentá-las. Afinal, a capacidade de se proteger e de lidar com tais situações é um dos fatores geradores do sentimento de segurança. 

O mercado é competitivo? É importante desenvolvermos nossas melhores habilidades; O tempo é curto? Temos que aprender a nos organizar no tempo e no espaço; Os relacionamentos são instáveis? Temos que ter autonomia; Estamos sujeitos a imprevistos? É importante aprendermos a resolver problemas; As coisas mudam? Sejamos flexíveis; Não podemos resolver tudo? Então é fundamental podermos contar com a ajuda de outra pessoa; Podemos ser roubados? Há providências que podem prevenir esse risco.

Não somos máquinas

Quanto às ameaças imaginárias, elas são medos que estão ancorados nas experiências vitais e nas crenças, elementos constitutivos da personalidade. A ansiedade proveniente desses medos é tão intensa quanto aquela relacionada às situações reais. Na maioria dos casos torna-se necessária a ajuda profissional a fim de acessar e revisar os registros de memória que nos mantêm atados ao medo.

O desafio de viver no nosso tempo é real. O medo de não ser capaz de cumprir as muitas exigências profissionais, acadêmicas, culturais, sociais, pessoais leva muita gente – inclusive crianças e jovens – a desenvolver severos quadros de ansiedade.

É fundamental, para a saúde física e psíquica do indivíduo, que ele avalie as exigências do mundo externo e defina quais delas ele deseja ou precisa realmente atender, e quais são aquelas que não lhe dizem respeito.

Ao priorizar o que é importante, deixando de lado o que não tem valor pessoal, eliminamos boa parte daquilo que constitui a fonte de muitos temores. A combinação de nossas preferências, habilidades, limitações, possibilidades e valores é o que nos torna únicos. Precisamos dedicar tempo e atenção  aos nossos sentimentos, às nossas tendências, pensamentos e motivações. Conhecer-se é uma condição fundamental para fazer escolhas de vida, abrindo mão de atender às exigências que não estão conectadas aos nossos valores, desejos e necessidades fundamentais. Nessa jornada, os sentimentos são nossos guias e nos lembram que somos humanos, não somos máquinas.

4 de dez. de 2016

Estresse Pós-Traumático



Em torno de 25% das pessoas que vivenciam uma experiência traumática apresenta sintomas crônicos


Em torno de 25% das pessoas que vivenciam uma experiência traumática apresenta sintomas crônicos
Por Vânia de Morais
É interessante observar como cada pessoa registra suas experiências e as valoriza de maneiras muito diferentes. O que é visto como um acontecimento corriqueiro para uma pessoa, pode assumir significados de grande valor emocional para outra. O que interessa quando buscamos compreender o sofrimento de alguém não são os fatos em si, mas a maneira como essa pessoa entendeu e vivenciou as situações que ficaram marcadas e se tornaram fonte de sofrimento.

Muitas pessoas sofrem com lembranças altamente perturbadoras que são ativadas por estímulos presentes no dia a dia, o que pode tornar a vida muito difícil. Situações, sensações, lugares, cores, cheiros que estejam associados a uma vivência traumática podem provocar a emergência de memórias ou sensações físicas e emocionais presentes no momento do trauma.

O que acontece é que quando o estresse é muito severo ou prolongado, o organismo pode não ser capaz de restaurar o equilíbrio nos moldes anteriores, persistindo, em vez disso, na manutenção de respostas associadas à vivência traumática. Esse padrão é caracterizado pela ativação permanente de estruturas cerebrais que facilitam a associação com os estímulos sensoriais que estavam presentes no momento do trauma.

Em torno de 25% das pessoas que vivenciam uma experiência traumática apresenta sintomas crônicos. Quando os sintomas de reação aguda ao estresse duram por mais de um mês, o quadro é diagnosticado como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O diagnóstico é feito com base na permanência, por mais de quatro semanas após um evento traumático, de sofrimento emocional intenso, que inclui:

• Vivência repetitiva e intrusiva (que invade a consciência) da situação traumática por meio de imagens, percepções ou pensamentos indesejados. Isso ocorre enquanto a pessoa está acordada ou durante o sono, na forma de pesadelos. Em geral, esses flashbacks são acompanhados de sentimentos e sensações físicas extremamente aversivas, que incluem sentimentos de medo, raiva, culpa, vergonha, impotência e desesperança. Muitas vezes a pessoa sente e age como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente. Sensações e situações que lembram ou simbolizam a vivência traumática podem provocar sofrimento psíquico e alterações fisiológicas como taquicardia, sudorese e alterações do ritmo respiratório.

• Incapacidade de enfrentar a ansiedade relacionada a lugares, pessoas, atividades e sensações que estejam associados ao trauma, o que leva a pessoa a evitá-los sistematicamente. Até mesmo pensar ou falar sobre o assunto pode causar desconforto, fazendo com que o indivíduo se esforce para evitá-los. Algumas cenas podem ser apagadas da memória. É comum haver uma redução no interesse pelas outras pessoas ou atividades, sentimentos de distanciamento e diminuição na intensidade dos afetos numa espécie de “anestesia” emocional. Esse estado de entorpecimento pode afetar seriamente os relacionamentos, a capacidade de desfrutar a vida e de fazer planos para o futuro.     

• Também estão presentes sintomas de excitabilidade fisiológica elevada, que podem incluir irritabilidade, dificuldades em se concentrar, atenção focada na busca de sinais de perigo no ambiente (hipervilância) e resposta de sobressalto exagerada. Esse estado de alerta constante pode levar a pessoa a um estado de exaustão, com prejuízos à saúde.   

O TEPT pode resultar de uma única experiência ou de uma sequência de episódios ocorridos com um mesmo estressor traumático, como é o caso do abuso sexual na infância, violência doméstica ou guerras. As formas de violência pessoal e intencional como estupro, tortura ou agressão física provocam estresse muito superior ao dos acidentes e desastres naturais. Em torno de 9% das pessoas que passam por acidentes apresentam TEPT, enquanto o mesmo quadro é desenvolvido por 46% das mulheres que sofreram estupro. Pessoas com história de abusos na infância são mais suscetíveis à retraumatização.

Quando não diagnosticados e tratados, indivíduos portadores de TEPT podem desenvolver quadros crônicos e incapacitantes com sintomas graves que comprometem ou impossibilitam a vida conjugal, social e profissional. Há casos nos quais a pessoa não apresenta sintomas durante algum tempo, mas tem uma recidiva ao entrar em contato com uma situação que tenha semelhança com o evento traumático. Indivíduos que não apresentaram sintomas de TEPT após o evento podem apresentá-los tardiamente, geralmente após a exposição a alguma situação que se assemelhe à original.

O tratamento para TEPT, em geral, combina psicoterapia e medicamentos. A psicoterapia, nesse caso, deve considerar a dificuldade do paciente para falar de seus medos, pois isso implica em reviver a situação e evocar os sintomas associados. É fundamental que se desenvolva uma relação de confiança e uma atmosfera de tranquilidade para que ele possa trazer os conteúdos de seus medos na medida em que se sinta seguro.

As experiências traumáticas podem estar na origem de outras síndromes psiquiátricas como depressão, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de pânico, fobias, dependência química e transtornos de conduta. A prioridade da investigação e intervenção terapêutica nem sempre é o trauma. Muitas vezes há outras questões que demandam atenção e devem ser tratadas antes que a pessoa esteja em condição de abordar o tema do trauma.

Além disso, as memórias traumáticas esquecidas nem sempre podem ser recuperadas, o que não inviabiliza o tratamento. O objetivo da terapia é restabelecer os sentimentos de segurança e confiança, aprimorando as habilidades do indivíduo para o enfrentamento de situações de perigo e sua capacidade para avaliá-las. Isso reduz a tendência que é induzida pelo trauma a supervalorizar os perigos. Um bom processo terapêutico deve também promover a integração da experiência vivida e a construção de crenças que ajudem o paciente a prosseguir seu caminho rumo a novas conquistas.  
Vânia de Morais
Psicóloga, doutora em Linguística (PUC Minas, bolsista pela Fapemig), mestre em Ciências da Saúde (UFMG), pesquisadora em cognição e linguagem. Concentra seus estudos nas questões relativas à linguagem em psicoterapia. Professora em cursos de capacitação de psicoterapeutas e de Especialização em Terapias cognitivas. 

8 de ago. de 2015

Os significados da vida


Os significados da vida


Que nossas perguntas nos levem cada vez mais longe na compreensão e na construção de sentidos para a vida de uma pessoa (Foto: Divulgação)
Qual é a verdade sobre um acontecimento que marcou a vida de uma pessoa? Sem entrar na discussão sobre a mentira, e partindo do pressuposto de que essa pessoa acredita naquilo que diz, gostaria de propor uma reflexão sobre os significados impressos nas histórias geralmente narradas.

Somos seres que, a fim de dar sentido às nossas experiências, geramos significados. As narrativas são construções que fazemos de nossas experiências. O vivido se torna uma realidade psíquica a partir do momento em que damos a ele um significado expresso por meio de palavras.

A maneira pela qual significamos as situações da vida resulta das circunstâncias que atravessamos desde a infância, da estrutura familiar e de como enfrentamos os desafios que a vida nos apresentou.

Somos, no final das contas, a resultante de tudo o que vivemos, mas não apenas dos fatos concretos, e sim de como os percebemos. A cada dia, novos significados se somam às redes já tecidas e, dessa forma, nos transformamos a cada nova experiência.

Trajetória evolutiva
É possível organizar a própria história com significados que levam a pessoa numa trajetória evolutiva, dando sentido e valor à vida de maneira construtiva. Por outro lado, é possível fazê-lo de maneira restritiva, criando significados para as experiências que limitam ou até impedem uma trajetória de vida satisfatória.

Os significados podem nos ser fornecidos por outrem, como o são pelos nossos pais ou cuidadores, em frases que podem nos acompanhar por toda a vida: “Você vale o que você sabe”. Ou  pela cultura: “Você vale o que você tem”. Ou ainda pelas nossas experiências, que são poderosos geradores de sentidos.

Ser humilhado, por exemplo, como assistimos frequentemente nas histórias de bullling que ocorrem nas escolas e mesmo no seio familiar, pode levar a um registro psíquico de “desvalor” de si mesmo e isso só será revertido com muito trabalho.

É interessante observar que às vezes as pessoas falam sobre “se conhecer” ou “se descobrir”, como se fôssemos prontos e acabados, como se houvesse algo em nós que é definitivo e essencial.

Eu me pergunto onde está essa coisa e se ela existe! O que vejo no desdobrar dos dias de conversas com as pessoas sobre suas vidas, concretas ou sonhadas, é o esforço de cada um para dar sentido à vida e às vivências de maneira a construir uma história coerente, compreensível e possível de ser levada na bagagem para o futuro.

História mal contada

Na maioria das vezes, o sofrimento está no peso que tem uma história mal contada a si mesmo. Se conhecer ou se descobrir, nesse sentido, poderia ser traduzido como ter a oportunidade de recontar a própria história e reconstruir seus sentidos de forma que caibam no peito e não fiquem derramando excessos ou espetando a alma com suas arestas.

Daí o valor do diálogo na vida das pessoas. O diálogo é o espaço da produção do sentido e é por meio dele que podemos costurar os retalhos de vida numa nova configuração.

O diálogo é uma poderosa experiência de se compartilhar esforços na tentativa de  formular uma atribuição de significado. Conversar consigo mesmo é uma modalidade importante, assim como as conversas com pessoas significativas.

Já o diálogo terapêutico tem a vantagem de buscar as peças para atribuir os significados nas experiências da própria pessoa, tornando a construção mais própria do indivíduo, sem muitas interferências das experiências de outros. Cabe ao terapeuta ser um facilitador neste trabalho de construção.

Conhecimento e verdade

A psicoterapia é um espaço de construção, desconstrução e reconstrução dialógica dos significados de forma a se formular narrativas que sejam libertadoras das amarras e do sofrimento do paciente.

Mas, então, não podemos conhecer a verdade sobre nós mesmos? O que, afinal de contas, diferencia conhecimento e verdade? A verdade está dada e a respeito dela não há que se fazerem perguntas, seja por estar demonstrada ou por prescindir da demonstração como é o caso da fé. Já o conhecimento nos exige perguntas e a cada resposta abre-se um novo leque de novos questionamentos.

As “verdades” de nossas vidas estão nas versões que somos capazes de lembrar ou extrair da percepção ou do entendimento que temos ou tivemos dos fatos ocorridos. E é exatamente essa a matéria-prima com a qual esculpimos a nossa história.

Muitas vezes não tivemos condições, por vários motivos, de compreender as situações da vida com clareza e trazemos dessas experiências entendimentos distorcidos que nos causam sofrimento. Se nossas perguntas gerarem reflexões suficientes para a construção de novas respostas, então atingimos nossa maior aspiração. Ou seja, que nossas perguntas nos levem cada vez mais longe na compreensão e na construção de sentidos para a vida de uma pessoa, assim como das coletividades, das culturas e da própria humanidade, que tantas perguntas sem respostas no impõe. Afinal, nossas histórias são sempre inacabadas.
Artigo publicado na coluna de Vania de Morais no site : www.domtotal.com

Vânia de Morais Psicóloga, mestre em Ciências da Saúde, doutora em Linguística, pesquisadora em cognição e linguagem. Professora em cursos de capacitação de psicoterapeutas e especialização em Terapias cognitivas na UFMG. 

17 de jan. de 2012


Sob o domínio do medo

Vivemos num mundo perigoso. Os perigos nos rondam todos os dias e por todos os lados. No trânsito, na vizinhança, nos relacionamentos. Quando ligamos a TV, imagens e notícias da violência invadem nossa casa e nos deixam assustados.

Portas trancadas, muros altos, alarmes e cercas elétricas, guaritas e câmeras de segurança, olhos bem abertos. Num único descuido, um invasor pode entrar em nossa casa, ferir nossos entes queridos, levar nossos bens ou tirar nossa vida.

Além dos perigos concretos, convivemos com ameaças à nossa vida emocional. Há o risco de sermos demitidos, trapaceados, de não ganharmos dinheiro o suficiente, de não sermos os melhores no exercício da profissão ou suficientemente bons para vencer a concorrência, manter o emprego, o status, o casamento, a família.

Na selva de pedra na qual vivemos, estamos todo o tempo nos protegendo de perigos reais e imaginários. Por isso podemos dizer que o medo adoece psiquicamente a sociedade, gerando ansiedade e insegurança.

Recursos terapêuticos
Como é que podemos ser saudáveis se vivemos numa sociedade enferma? Eis uma boa pergunta, e o que a torna boa é justamente a capacidade de evocar reflexões na tentativa de encontrar uma resposta.

A psicologia oferece recursos terapêuticos eficazes para o manejo da ansiedade. A medicina dispõe de fármacos, que são agentes fundamentais para o alívio do sofrimento. Ambas se tornam potentes aliadas na regulação psíquica e bioquímica necessária à reversão do estado de alerta que é patologicamente disparado em alguns de nós.

A questão a ser respondida diz respeito ao ponto de equilíbrio entre os perigos reais e os imaginários. O fato de vivermos num mundo que realmente comporta muitos riscos pode nos levar a tentar prever as futuras ameaças às quais estaremos expostos, a fim de nos protegermos.

A capacidade de planejamento e ação eficaz relacionada à antecipação do tempo é uma conquista evolutiva do cérebro humano. Ela foi extremamente importante na evolução da espécie, tornando-se uma das características que nos diferenciam dos outros animais.

No entanto, essa mesma capacidade pode se reverter numa patologia. Isso ocorre quando as previsões criam, de maneira crônica, um estado de alerta que nos mantém em constante vigilância, temendo e criando estratégias e comportamentos que visam evitar perigos imaginários. Quando isso ocorre, os custos físicos e emocionais são altíssimos (como abordados no artigo “A cultura da ansiedade”).  

Riscos imaginados
A solução saudável para o problema é nos protegermos, sim, dos perigos reais, mas sem nos deixar dominar pelo medo daqueles que são mero fruto da nossa imaginação. Para fazer isso, o primeiro desafio é sabermos diferenciar o real do imaginário. Na maioria das vezes, essa tarefa exige a ajuda de um psicoterapeuta.

Os ansiosos tendem a acreditar que seus pensamentos refletem a realidade e essa convicção é o que faz disparar as reações de ansiedade, que são reais, incômodas e frequentemente assustadoras para quem as experimenta. Contudo, tais reações são consequência do pensamento que prevê perigos, são a preparação do organismo para o enfrentamento dos riscos imaginados.

Depois de identificarmos as ameaças reais às quais uma pessoa está exposta, é preciso desenvolver as habilidades necessárias para enfrentá-las. Afinal, a capacidade de se proteger e de lidar com tais situações é um dos fatores geradores do sentimento de segurança. 

O mercado é competitivo? É importante desenvolvermos nossas melhores habilidades; O tempo é curto? Temos que aprender a nos organizar no tempo e no espaço; Os relacionamentos são instáveis? Temos que ter autonomia; Estamos sujeitos a imprevistos? É importante aprendermos a resolver problemas; As coisas mudam? Sejamos flexíveis; Não podemos resolver tudo? Então é inevitável contarmos com alguém; Podemos ser roubados? Há providências que podem prevenir esse risco.

Não somos máquinas
Quanto às ameaças imaginárias, elas são medos que estão ancorados nas experiências vitais e nas crenças, elementos constitutivos da personalidade. A ansiedade proveniente desses medos é tão intensa quanto aquela relacionada às situações reais. Na maioria dos casos torna-se necessária a ajuda profissional, para acessar e revisar esses registros de memória e nos libertarmos do medo.

O desafio de vivermos no nosso tempo é real e muito nos exige. O medo de não ser capaz de cumprir as muitas exigências profissionais, acadêmicas, culturais, sociais, pessoais leva muita gente – inclusive crianças e jovens – a desenvolver severos quadros de ansiedade.

É fundamental, para a saúde física e psíquica do indivíduo, que ele avalie as exigências do mundo externo. Em seguida, é necessário definir quais delas ele deseja ou precisa realmente atender, e quais são aquelas que não lhe dizem respeito.

Ao priorizar o que é importante e ao deixar de lado aquilo que não tem valor pessoal, eliminamos boa parte daquilo que constitui a fonte de temores. A combinação de nossas preferências, habilidades, limitações, possibilidades e valores é o que nos torna únicos. Ainda que nos causem sofrimento, os sentimentos nos fazem lembrar que somos humanos e não máquinas.

Vânia de Morais Psicóloga, mestre em Ciências da Saúde, doutoranda em Linguística, pesquisadora em cognição e linguagem. Professora em cursos de capacitação de psicoterapeutas e especialização em Terapias cognitivas na UFMG.